aVARlanche: a avalanche tricolor em tempos de VAR no futebol

G. da Natividade Mac.
11 min readJan 10, 2022

Por Guilherme Natividade

Geral do Grêmio no último GREnal disputado no Estádio Olímpico, em 2012.

O domingo do dia 23 de agosto de 2009 ficou eternamente marcado na minha vida como a primeira vez em que entrei no Estádio Olímpico Monumental para assistir a uma partida do copeiro e imortal do Rio Grande, meu amado Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense. Aos meus dez anos já completos, e acompanhado por meu querido tio, marido de minha tia materna e meu grande parceiro de cancha (o cara que, graças a ele, me fez ser gremista ), adentrei na antiga casa tricolor para torcer pelo Imortal, em partida válida pela 21ª rodada do Campeonato Brasileiro.

Naquela tarde ensolarada de domingo em Porto Alegre, com público de mais de 20 mil presentes no Monumental da Azenha, pude vibrar com um show da equipe treinada por Paulo Autuori sobre o Atlético-MG, treinado pelo ex-técnico gremista Celso Roth. No campeonato nacional daquele ano, bem como em toda a temporada, o Grêmio fazia uma incrível campanha como mandante, não tendo perdido nenhuma partida dentro do Olímpico entre as tantas competições que disputou ao longo de 2009 (Gauchão, Copa do Brasil, Libertadores e Brasileiro). E aquele domingo de agosto não foi diferente. Da ilustre e pulsante torcida Geral do Grêmio, comemorei os quatro gols (marcados por Réver, Perea, Souza e Jonas, respectivamente) — sendo três deles apenas no primeiro tempo — que deram a vitória de goleada por 4 a 1 ao Tricolor naquela tarde. Como era de costume na Azenha ao se festejar gols do clube mais copeiro do Brasil, o espetáculo ficou por conta da belíssima e exclusiva no país avalanche tricolor. Logo em meu primeiro jogo presente no estádio, as arquibancadas vieram abaixo, em uma acelerada descida de impulsão e alegria contagiante do torcedor gremista. E lá no meio estava eu, um garoto de apenas uma década de idade, ansioso, nervoso e fascinado, cantando, apoiando, vibrando, pulando e correndo pelo Grêmio, com meu tio, com a Geral, com a nossa gente. Foi essa vivência nas arquibancadas do Monumental, algo incomparável com qualquer outra torcida no Brasil, que fez com que eu me tornasse o gremista fanático que sou hoje.

Todo gremista sabe que não há sentimento maior e melhor no mundo do que torcer pelo Grêmio, e só quem é pode ser capaz de compreender essa sensação. Quem não compartilha desse intenso sentimento, como bem explicita um dos mais belos cânticos da nossa brilhante barra, “não trate de entendê-lo”. E a avalanche foi uma das principais expressões desse sentimento gremista no espetáculo que é o futebol. Como nenhuma outra torcida em todo o território brasileiro, a hinchada tricolor gaúcha trouxe às arquibancadas do esporte mais aclamado do país algo único e inovador por aqui, expressando em simbolismo cisplatino e castelhano a loucura que é servir às três cores. Desde os anos iniciais da década de 2000, com o surgimento da Geral, a primeira barra-brava do Brasil, as arquibancadas do Estádio Olímpico vinham abaixo e toda aquela estrutura de concreto dos anos 1950 tremia com tamanha vibração e emoção por um gol tricolor. Era uma experiência e uma incrível sensação que só quem é gremista e que pôde viver aqueles tempos de Azenha pode descrever, sentir e recordar com profundo saudosismo. Eu, por sorte e graças ao meu tio gremistaço, pude ter essa esplêndida vivência, sendo capaz de, hoje, ter momentos de nostalgia e relembrar aqueles tempos com muito carinho e saudade do velho casarão e das breves alegrias que tive por lá presencialmente. Vivenciar a avalanche no Monumental, alentando junto com a Geral durante os 90 minutos, é algo que as novas gerações de tricolores, bem como as diversas gerações de torcedores de outros clubes do futebol brasileiro, não são capazes sequer de imaginar como é uma expressão tão enlouquecedora de sentimento por parte de um torcedor. Portanto, custe o que custar, jamais comparem.

Entretanto, o que me motivou a escrever este texto é a seguinte reflexão que tive em momentos em que recordava os tempos de Olímpico: como seria a avalanche gremista com a tecnologia do VAR implementada no futebol? A avalanche, até ser suspensa após uma tragédia na Arena em janeiro de 2013, durante partida válida pela Pré-Libertadores contra a LDU do Equador, era realizada nas arquibancadas das canchas gremistas, sempre no setor da Geral do Grêmio (Portão 10 do Olímpico e arquibancada norte da Arena), após um jogador da equipe tricolor anotar um gol favorável às nossas cores. Assim que o gol era marcado, de imediato, os torcedores gremistas desciam correndo as arquibancadas do estádio em direção ao alambrado ou à mureta, indo comemorar perto do marcador que se aproximava da massa e formando, para os que visualizavam a arquibancada de imagens televisivas ou de outros setores da cancha, uma avalanche de torcedores vestindo azul, preto e branco.

Mas como seria formado esse descontrole com o VAR atuando nas quatro linhas do campo?

De uns anos pra cá, o futebol moderno introduziu uma nova tecnologia no esporte mais popular do planeta. O Árbitro Assistente de Vídeo, o VAR, do inglês Video Assistant Referee, é um instrumento que analisa alguns lances ocorridos durante a prática do futebol, auxiliando o árbitro de campo em suas decisões no jogo. A ferramenta tecnológica não é de todo o mal, tendo em vista que ajuda os árbitros das partidas e dificulta que erros decisivos aconteçam e interfiram no resultado do jogo, apesar de ainda ocorrerem em muitos casos, resultando em falhas graves. A não utilização do árbitro de vídeo em várias ocasiões, mesclada aos profissionais muitas vezes despreparados e um tanto perdidos, principalmente no Brasil, faz com que a tecnologia seja por vezes desacreditada e bastante criticada por torcedores e clubes prejudicados que, em determinados momentos, se posicionam contrários ao uso da ferramenta. Porém, é válido e importante destacar que, sem o VAR para evitar que alguns erros escandalosos de arbitragem e atos antidesportivos e em desrespeito ao fair play ocorram nos gramados do mundo todo, sobraria apenas os árbitros negligentes, sem preparo e sem critérios, além dos atletas desleais e descomprometidos com a conduta ética da profissão que exercem.

Contudo, como o intuito deste texto não é defender ou criticar o VAR e os juízes e assistentes de campo do futebol, deixo a opinião quanto aos temas para que cada um faça suas análises, ressalvas e julgamentos de acordo com suas visões e conhecimentos. O posicionamento em relação ao VAR e à arbitragem varia, e nós gremistas já fomos por algumas vezes beneficiados por cada um deles e por inúmeras vezes muito prejudicados por ambos. E vida que segue, pois quem vive chorando a vida inteira por erros de arbitragem muitas vezes até inexistentes são os vermelhos do aterro do Guaíba. Isso nós deixamos a cargo deles.

O ponto é que uma das principais interferências do VAR se dá em lances que resultam em gol. Possibilidade de impedimento, faltas na origem da jogada, qualquer irregularidade é verificada antes do juiz validar o marco no placar. O feito pode ter sido o mais legal possível, sem haver qualquer indício que aponte irregularidade durante o lance e/ou na conclusão dele, mas o árbitro de campo sempre irá se posicionar com a escuta no ouvido para certificar se tudo ocorreu dentro da legalidade das regras. Nesse sentido, por vezes até é bom analisar bem os detalhes e atestar que a jogada foi limpa para não haver injustiças, mas essas verificações costumam ser demasiadamente frequentes, por vezes pouco eficientes e MUITO demoradas, esfriando o ânimo dos jogadores e da própria torcida. Os novos modelos oriundos da modernidade que muitas vezes estragam a prática e a diversão do futebol faz com que os atletas e os torcedores duvidem de um gol anotado e contenham um momento de ápice de empolgação, o que em nada combina com a nossa saudosa avalanche. A ideia da avalanche pela torcida do Grêmio, herdada dos hermanos argentinos e uruguaios, é fruto do futebol raíz, não tendo espaço em meio às modernidades tecnológicas que introduziram no esporte.

A avalanche no momento de um gol gremista nos tempos atuais teria de ocorrer só após o árbitro de vídeo avaliar toda a jogada e o árbitro de campo validar, enfim, o marco tricolor. As análises demoradas de por vezes mais de 5 minutos esfriaria o ânimo do torcedor gremista, fazendo com que todo aquele momento de êxtase pós-gol fosse reprimido até esvair-se pelas arquibancadas, reservando um espaço que seria tomado pelo silêncio, pela inquietação, pela angústia da espera e pela revolta generalizada. Todo aquele momento de alegria e entusiasmo com o feito tricolor no jogo seria absorvido por sentimentos que em nada combinam com as boas vivências do futebol, fazendo com que um dos símbolos de nossa alma copeira perdesse sua graça e, principalmente, sua essência.

Outra alternativa — e talvez a mais válida para o cenário — seria o torcedor do Grêmio deixar-se levar pelo amor à camiseta e formar o descontrole sem se preocupar com o que poderia vir a seguir. Atualmente, descer as arquibancadas da nossa Arena em uma avalanche de sentimentos manteria nosso jeito raíz de extravasar e expressar a paixão que sentimos pelo Imortal, mas, além da arquibancada norte, estaríamos também correndo o risco da frustração e da decepção. Se o juiz de campo validasse o gol, mais festa e confirmação da alegria; caso anulasse, desespero e revolta tomariam conta do estádio, meio que também porque, além de ter anulado o gol, teria, consequentemente, “anulado” uma avalanche. Em ambas as providências, a herança do Monumental perderia seu cerne e mancharia sua história, estando fadada ao fim e sepultada pelo futebol moderno e suas atualidades.

Imagine ter de segurar uma avalanche após os gols de Tcheco e Diego Souza contra o São Paulo nas oitavas de final da Libertadores de 2007. Imagine ter de esperar pela análise do VAR após os gols anotados por Tcheco e Carlos Eduardo frente ao Santos nas semifinais da mesma competição, também em 2007. Imagine ter de correr o risco do VAR anular os gols de Souza e Maxi López no GREnal centenário em 2009. Ou então imagine o desânimo de ver um dos tantos gols do mestre Jonas ser invalidado pelo árbitro de vídeo logo após uma linda avalanche ocorrer em um Olímpico lotado com mais de 40 mil gremistas. O VAR poderia ter frustrado grandes festas e estragado belíssimas celebrações em domingos ensolarados na Azenha. Parece que de fato a tecnologia, apesar de necessária para os avanços e para evolução da prática esportiva, não combinaria em nada com a nossa alma castelhana aguerrida.

O VAR muitas vezes nos beneficiaria, evitando muitos roubos já ocorridos contra nós em nossos domínios. A tecnologia também poderia nos proporcionar duas avalanches, uma para quando a bola cruzasse a linha da goleira e outra após o juiz validar o gol gremista. Essa é uma possibilidade a se considerar. Mas claro que por vezes também seríamos prejudicados, como somos frequentemente, em lances em que a ferramenta de vídeo não é utilizada para verificar aquele pênalti não assinalado a nosso favor. De todo o modo, a festa gremista em seu velho estilo de Olímpico, em épocas de Azenha, não seria mais a mesma, pondo a fabulosa avalanche condicionada às decisões do VAR e à longa espera pelas definições dos árbitros em suas cabines.

Por isso somos contrários ao futebol moderno que transformou um esporte efervescente num teatro ou concerto de música clássica, não pelo VAR, mas por uma série de medidas “moderninhas” e chatas que estragam as coisas boas que o futebol nos proporciona. A essência gremista é copeira, vibrante, guerreira e peleadora como nossas raízes cisplatinas, e o VAR, que o que mais faz é nos prejudicar em diversas ocasiões, só serviria para arruinar uma das maiores marcas de nossa torcida apaixonada. Ao que parece, infelizmente não há espaço para o gremismo genuíno nas modernidades do esporte mais amado do Brasil.

Após aquela partida contra o Galo em 2009, fui ao Olímpico em mais duas oportunidades antes de partir para um novo endereço, no bairro Humaitá. Em 2010, durante partida noturna válida pelo Campeonato Gaúcho, vibrei com uma vitória por 2 a 1 contra o Novo Hamburgo, sem avalanche. Só voltaria a vivenciar uma avalanche na Geral em 2012, em minha terceira e última partida no Olímpico, válida pelo Campeonato Brasileiro. Na vitória por 2 a 1 sobre o Atlético-GO durante uma noite fria de setembro em Porto Alegre, o Olímpico contava com um público de mais de 46 mil gremistas, ultrapassando a capacidade máxima do estádio. Para aquele jogo, o clube havia feito uma promoção com preços mais baratos e sócios com direito a levar um acompanhante, além de mulheres com entrada franca. Como de costume, fui acompanhante de meu tio, que é sócio, podendo comemorar os gols anotados por Elano das arquibancadas do setor sul.

Recordo que, naquela partida, havia apenas um torcedor do time goiano ocupando o setor destinado à torcida visitante. Enquanto isso, gremistas ocupavam seu espaço no estádio até o final do primeiro tempo. Lembro que já era intervalo de jogo e ainda tinha tricolores no túnel tentando acessar a arquibancada para assistir ao segundo tempo. Muitos torcedores tiveram de pular as grades de separação entre os setores, sentar por cima da mureta e se espremer uns aos outros para liberar espaço aos companheiros que vinham ocupar áreas que não eram mais possíveis naquele momento. Já na segunda etapa, o torcedor atleticano que estava lá do outro lado do estádio teve de ser transferido para outro setor (um camarote, não sei dizer exatamente ) , fazendo com que a torcida gremista ocupasse aquele espaço, desafogando os que estavam espremidos na outra parte. Foi num piscar de olhos e, quando percebi, todo o Olímpico estava tomado por gente vestindo azul, sem que fosse possível notar um só espaço vazio.

Eu estava lá na Geral, apertado entre a gremistada. Fazia muito frio em Porto Alegre, mas naquele estádio a sensação térmica era de mais de 30 graus além das oito horas da noite. E foi de lá que acompanhei a majestosa avalanche após o primeiro gol do nosso meia, de falta, tendo assim minha última vivência no descontrole tricolor. Já no segundo gol, minhas expectativas foram frustradas e meu entusiasmo sufocado pela superlotação do estádio. Devido ao número excessivo de torcedores na arquibancada, a segunda avalanche teve de ser contida para se evitar que algum incidente pudesse ocorrer com algum torcedor. Minhas expectativas e minha ansiedade por mais uma descida de arquibancada haviam sido frustradas, mas eu não desanimei por um só segundo. Como bom gremista que sou, pulei, vibrei e alentei até o apito final, sem essa de turista. Tomei banho de cerveja, fiquei espremido entre um bando de tricolores, vi o adversário nos meter gol e até sai sem voz do estádio, porém nunca desanimei ou minimizei o amor que sinto pelo Grêmio. Nas raras oportunidades que tive de ir ao Olímpico, aproveitei e honrei a camisa, contando com três vitórias em três jogos. Com pé quente, descontrolado e sem o VAR para barrar meus ânimos de jovem torcedor.

Esse modernismo futebolístico de fato não compactua em nada com a essência gremista. É como água e óleo, não se misturam. São fórmulas distintas, e o Grêmio jamais se distingue ou se desvincula de suas raízes. A torcida e a marca tricolor atestam isso, carregando sempre a alma copeira e castelhana, para o que der e vier, onde o Grêmio imortal estiver. Talvez seja por isso que a nossa saudosa avalanche tenha encerrado seu espetáculo antes do tempo. Ou seria em tempo? Em tempo de não esbarrar de encontro com o VAR e ser barrada pelo futebol moderno (se é que não tenha sido barrada pelas modernidades em níveis de excelência de nossa nova casa). Talvez tenha sido isso, e prefiro me contentar com essa teoria para conter a saudade dos bons e velhos tempos de Monumental, as épocas raízes.

O VAR teria sido o artefato enigmático de para-avalanche na arquibancada norte da Arena, sem a necessidade da presença física das instalações de ferro no setor. Antes que o marco símbolo do Olímpico se transformasse em “aVARlanche”, remodelando e extinguindo uma expressão do sentimento gremista, a marca se moldou a outras formas de expressar esse sentimento viciante e descomunal. Pois as faces, os símbolos, as expressões e os momentos passam correndo como uma arquibancada tomada por gremistas em direção ao alambrado após um gol marcado aos 45 minutos do segundo tempo, mas o amor pelo Grêmio permanece na memória e no coração de cada torcedor tricolor. E assim a vida segue, em continuidade com a imortalidade gremista, em um sentimento que, mesmo não sendo campeão, não se apaga e não se termina.

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G. da Natividade Mac.
G. da Natividade Mac.

Written by G. da Natividade Mac.

★ Estudante de Ciências Sociais na UFRGS e de Biblioteconomia no IFRS, torcedor do Grêmio FBPA, escritor, editor de vídeo e ateu militante. • Porto Alegre/RS

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